Microbiota do trato gastrointestinal

O trato gastrointestinal aloja um ecossistema complexo que associa componentes bióticos, como a microbiota residente, e componentes abióticos, como o alimento ingerido. O termo microbiota foi definido por Savage  (1977) como “população de microrganismos presentes nas superfícies mucosas de um indivíduo”.

De uma forma simples, podemos definir microbiota como sendo um conjunto de microrganismos que está associado a uma determinada superfície corporal, de forma permanente ou transitória.

No organismo humano, todas as superfícies mucosas, ou seja, em todas as regiões onde há contato com o meio externo (nariz, boca, estômago, intestino delgado e grosso, ouvido, pele, uretra, vagina, entre outras) há um conjunto de microrganismos associados, como pode ser visto na Figura a seguir:

 

Instalação da microbiota intestinal

Seres humanos e outros animais nascem sem qualquer tipo de microrganismo associado; no entanto, esta situação é apenas transitória. A colonização do trato gastrointestinal ocorre imediatamente após o nascimento, sendo os primeiros microrganismos a colonizar o intestino aqueles oriundos da mãe e do ambiente que o circunda.

O potencial de óxido-redução positivo no intestino do recém-nascido propicia a instalação de microrganismos anaeróbicos facultativos. O consumo de oxigênio por estes microrganismos altera gradualmente o ambiente intestinal, tornando-o mais reduzido, ou seja, com menos disponibilidade de oxigênio, o que permite o crescimento subsequente de anaeróbicos obrigatórios.

(Penders et al., 2006; Machado et al., 2015; Suez et al., 2019)

Após um a dois anos, nos seres humanos, o trato gastrointestinal passa a abrigar uma comunidade microbiana similar à de um adulto, que é extremamente densa e diversa, variando quantitativa, qualitativa e metabolicamente em função da localização transversal e longitudinal no trato digestivo, e da idade do hospedeiro. Toda esta comunidade microbiana pode se localizar no lúmen, nas criptas de Lieberkϋhn, na superfície do epitélio intestinal ou inserida na camada de mucina.

(Nicoli & Vieira, 2004; Nava & Stappenbeck, 2011; Wieers et al., 2020)

Uma vez instalada, a microbiota digestiva, junto com o seu hospedeiro, representa um dos ecossistemas mais complexos e menos conhecidos e controlados.

Nesse ecossistema, encontramse dois grupos microbianos: a microbiota autóctone, constituída de micro-organismos sempre presentes em níveis populacionais estáveis em um nicho anatômico específico e em uma determinada época da vida; e a microbiota alóctone, encontrada de maneira esporádica e transitória em qualquer local anatômico.

Estes últimos, não são implantados em circunstâncias normais, são adquiridos via ingestão de alimentos e bebidas, ou provenientes da pele ou de membranas respiratórias superiores.

(Nicoli & Vieira, 2004; Ruan et al., 2020)

Composição da microbiota gastrintestinal

A população de microrganismos no intestino é composta por 1014 Unidades Formadoras de Colônias (UFC), número dez vezes maior que o de células do próprio hospedeiro que gira em torno de 1013 células.

Embora não seja conhecida a composição exata da microbiota, avanços na pesquisa do microbioma humano permitiram não somente conhecer melhor esta composição, como também compreender melhor a funcionalidade microbiana no trato gastrointestinal.

(Cani & Delzenne, 2011; La Fata et al., 2018; Ruan et al., 2020)

Três distintos níveis populacionais microbianos podem ser diferenciados nesta porção:

  • a microbiota dominante (99% da população; 109a 1011 UFC/g de conteúdo intestinal);
  • a microbiota sub-dominante (0,99% da população, 107a 108 UFC/g de conteúdo intestinal) e
  • a microbiota residual (0,01% da população, < 107UFC/g de conteúdo intestinal)

(Nicoli & Vieira, 2004)

A Figura 1 mostra os principais gêneros bacterianos encontrados em cada porção do trato gastrintestinal.

Figura 1 – A composição do microbioma humano varia conforme a localização no trato gastrointestinal. Os gêneros bacterianos na cavidade oral, esôfago, estômago, intestino delgado e cólon são mostrados.

Fonte: Ruan et al., 2020

A microbiota dominante é constituída somente por bactérias anaeróbias obrigatórias pertencentes aos filos Actinobacteria (bactérias Gram positivo; pertence a esse filo, o gênero Bifidobacterium), Bacteroidetes (bactérias Gram negativo; pertence a este filo, o gênero Bacteroides) e Firmicutes (bactérias Gram positivo; pertence a este filo, o gênero Lactobacillus). Já a microbiota sub-dominante é predominantemente anaeróbia facultativa ; a residual, representada por uma variedade de microrganismos procarióticos e eucarióticos.

(Nicolli & Vieira, 2004; Ruan et al., 2020)

Em geral, quanto mais numerosa é a população de uma espécie bacteriana, mais estável ela é no seu nicho ecológico. Por isso, no nível de gênero,os microrganismos dominantes e sub-dominantes permanecem relativamente constantes e estáveis no tempo e de um indivíduo para o outro.

Ao contrário, a microbiota residual é bastante variável entre indivíduos e flutua consideravelmente ao longo do tempo, no mesmo indivíduo. Os microrganismos dominantes e subdominantes da microbiota intestinal é composta, predominantemente, por espécies dos gêneros Lactobacillus e Bifdobacterium.

Pelo seu tamanho e atividade metabólica, a microbiota intestinal é, muitas vezes, considerada como um órgão ou organismo, atuando nas superfícies mucosas do hospedeiro. O peso total da microbiota em um adulto humano é estimado em 1,2 Kg e a atividade metabólica exercida por ela é comparável com a do fígado, que é o órgão metabolicamente mais ativo do corpo humano

(Nicoli & Vieira, 2004; Egert et al., 2006; Suez et al., 2019)

Funções da microbiota intestinal

É responsável por três funções importantes para a saúde do hospedeiro:

  1. a resistência à colonização (inibe a multiplicação de patógenos alóctones e autóctones oportunistas),
  2. a imunomodulação (permite uma resposta imune mais rápida e adequada durante uma agressão infecciosa) e
  3. a contribuição nutricional pela síntese de vitaminas (K2 e B12), enzimas (celulases, lactase e mirosinase, são alguns exemplos) e substratos energéticos (como ácidos graxos de cadeia curta, sobretudo butirato e propionato.

O sistema imune associado à mucosa intestinal é composto por células B e T, células dendríticas, macrófagos e outros tipos celulares únicos dentro do sistema como as células M, células de Paneth, linfócitos intraepiteliais, além das células epiteliais que exercem um papel importante na resposta imune inata da mucosa e constituem uma barreira física que divide o lúmen da lâmina própria.

Estes tipos celulares estão presentes de forma difusa no epitélio e na lâmina própria da mucosa ou organizados em microambientes localizados, tais como as placas de Peyer e os linfonodos mesentéricos. A comunicação observada entre as células do sistema imune da mucosa intestinal se deve aos distintos tipos celulares que secretam citocinas e quimiocinas, as quais regulam a magnitude e natureza da resposta imune em função do estímulo ativador. 

A Figura 2, a seguir, mostra as principais células presentes no epitélio intestinal e na lâmina própria.

Figura 2 – Principais células encontradas no epitélio intestinal e na lâmina própria.

Fonte: La Fata et al., 2018

Referências

CANI, P.D.; DELZENNE, N.M. The gut microbiome as therapeutic target. Pharmacology and Therapeutics, v. 130, p. 202-212, 2011.

EGERT, M.; GRAAF, A.A.; SMIDT, H.; VOS, W.M.; VENEMA, K. Beyond diversity: functional microbiomics of the human colon. Trends in Microbiology, v. 14, p. 86-91, 2006.

La Fata, Giorgio., Peter Weber1., M. Hasan Mohajeri. Probiotics and the Gut Immune System: Indirect Regulation,Probiotics & Antimicro. Prot, 10:11–21, 2018.

Machado, Alessandra Barbosa Ferreira., Moreira, Ana Paula Boroni., Rosa, Damiana Diniz., Maria do Carmo. Microbiota gastrintestinal – evidências da sua influência na saúde e na doença. 1º edição. Editora Rubio, 2015.

NICOLI, J.R.; VIEIRA, L.Q. Microbiota gastrointestinal normal na doença e na saúde. In: LPCastro; LGV Coelho. (Org.). Gastroenterologia. 1 ed. Rio de Janeiro, v. 1, p. 1037- 1047, 2004.

PENDERS, J.; THIJS, C.; VINK, C.; STELMA, F.F.; SNIJDERS, B.; KUMMELING, I.; BRANDT, P.A.; STOBBERINGH, E.E. Factors influencing the composition of the intestinal microbiota in early infancy. Pediatrics, v. 118, p. 511-521, 2006.

Ruan, Melinda A. Engevik.,Jennifer K. Spinler, James Versalovic. Healthy Human Gastrointestinal Microbiome: Composition and Function After a Decade of Exploration Wenly. Digestive Diseases and Sciences, 2020.

Suez, Jotham., Niv Zmora., Eran Segal ., Eran Elinav . The pros, cons, and many unknowns of probiotics. Nature Medicine, 2019.

 

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